Crônicas de Jade


Jade cutucou algumas das brasas que ainda reluziam entre cinzas quase brancas. Quase todos já ressonavam, embalados, pelo muito vinho e pelo pouco cheiro de carne assada que ficara impregnado nas roupas. Agachada diante da fogueira, ela ajeitou mais uma vez o xale em seus ombros e voltou-se para os poucos que ainda tentavam equilibrar a cabeça em pé.

A volta pra casa nunca era fácil; mesmo quando haviam vitórias a contar, ficava um pouco de cada um para trás, talvez todo um homem, deixado numa cova rasa, ou nos braços de uma mulher que não era sua esposa...

De qualquer forma estavam mortos, era essa a notícia a levar.

A cigana ergueu os olhos e fitou as estrelas, com os olhos um pouco borrados de Kohl, deixou escorregar os cabelos de pesados cachos pelas costas sentiu que também precisava descansar.

Era essa sua rotina, esperar que os homens dormissem para tirar da pele o pó da estrada e dormir, antes que eles se lembrassem de sua presença feminina... Trazendo os olhos novamente ao plano dos vivos, sentiu queimar em seu rosto um olhar de fogo, que ainda não dormira.

Encarou-o, pois não era de se curvar honestamente, e esse breve momento de contemplação pareceu custar-lhe a vida.

No início da viagem, amara aquele homem com todas as forças de sua alma, quase disposta a renegar a liberdade tão cara, por aquele olhar... Tivera-o nos braços por algumas noites, mas ela se viu obrigada a aceitar a verdade de que, homens como ele, não dedicavam amor às ciganas, talvez algumas horas, mas nunca suas vidas.

E naquele momento, viu equilibrado nos olhos do soldado uma lágrima que recusava a queda; e Jade sentiu naquele instante que ele era seu espelho, aquela dor já fora sua aquela lágrima também se equilibrara no canto de seus olhos escuros...

E aquela dor, serviu de alento à cigana, que se ergueu e procurou o calor de sua barraca.

Não importava por quem fosse; ele também sofria, ele também sentia o sabor amargo que insistia em roubar o paladar de Jade. Sabia que, como de outras vezes em que sofrera, ele esperava que a cigana o envolvesse num abraço, que lhe enxugasse as lágrimas com seus cabelos perfumados, mas dessa vez não.

Dessa vez ele que dormisse com sua dor.

E na manhã seguinte, antes que o acampamento seguisse viagem, após cuidar das feridas dos doentes (único motivo pela qual era considerada entre aqueles guerreiros), Jade cantou e dançou e seus olhos risonhos anunciavam que ainda havia vida sob aqueles longos cabelos.

Numa encruzilhada qualquer, ainda naquele dia, um reencontro, um homem que podia erguê-la do chão e que dizia ver aquela vida que ardia novamente em seus olhos...

E na manhã seguinte, Jade, ainda podia ouvir a boca que bebera seus beijos, chamá-la de louca, como se ele também não o fosse...

Libertara-se.

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