Two young niggas

Foto de David Olivelli


Segunda feira, dez e quarenta da noite, cansada depois de um dia inteiro de trabalho mais algumas horas de faculdade, passo num posto de conveniência. O posto a uma quadra da faculdade, fica no meu caminho natural de volta pra casa. Desço da moto e enquanto meu marido estaciona, entro na loja, pego alguns produtos e vou para a fila do caixa. Duas pessoas à minha frente, outras três atrás de mim.


Nesse instante, dois jovens negros, muito negros, altos, esguios, de roupas surradas, um deles de touca na cabeça entram também na Conveniência. Param próximo à porta e fitam o interior com olhos grandes, em movimentos lentos e perdidos.

Uma das funcionárias do posto se posiciona junto à porta. A outra, que está no caixa, decide atender aos dois jovens antes do rapaz que ainda está à minha frente. Olhando séria para o jovem negro que está sem touca, pergunta o que ele quer.

Vale lembrar que esse mesmo posto, já foi por diversas vezes, alvo de assaltos. A apreensão no ar está tão nítida, que quase se poderia cortá-la com uma faca. Enquanto o rapaz sem touca é interpelado pela moça do caixa, o outro ainda caminha lentamente pela pequena loja, observando os produtos. Contempla, alheio a todo o resto. O jovem que recebeu a seca pergunta, responde tímido, quase como se as palavras agredissem língua e céu da boca, que queria créditos para o celular.

Meus músculos relaxam, a tensão cede à surpresa; aqueles moços, tão negros, tão absolutamente comuns ao nosso cotidiano, não eram brasileiros! As poucas palavras, até mesmo a monossílaba "TIM" eram pronunciadas num cantar diferente. A voz suave do moço negro vinha marcada pelo sotaque de quem não é daqui, de quem teve que aprender o português à ferro e fogo para sobreviver.

Instantaneamente me lembro de ter lido em algum canto, que um grupo de haitianos viera para Uberaba em busca de trabalho.  Trazidos do Acre, trabalham na construção civil, numa iniciativa de sindicato e empresários do ramo. Esses, eram dois dos 48 que aqui estão. Talvez algum desses dois jovens, fale duas, três línguas a mais que eu, ignorante que mal versa em português e arranha algo no espanhol ou inglês. São almas marcadas pela tragédia, pela fome, pelas dificuldades e ainda para piorar, pelo preconceito, não apenas das pessoas brancas que estavam na conveniência, mas também dos pardos, dos miscigenados que ali estavam. Como a moça do caixa. Como eu também.

Deus do céu. Pensar em toda a história que marcava aquela pele negra, retinta, fazia minha cabeça ferver, e ao mesmo tempo doer de vergonha, vergonha de ter sentido medo, de ter avaliado, julgado e condenado aqueles quase meninos. Aqueles moços vestidos com a simplicidade de roupas doadas, eram trabalhadores,  tentando apenas se comunicar com alguém. Talvez com os amigos que ficaram no Acre. Talvez com alguém melhor do que eu que soube olhar além da carne negra.


Obs: O "niggas" (gíria americana depreciativa para negros) está ali bem no título, para que eu não caia na tentação hipócrita de esquecer que fui preconceituosa.

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1 Comentários

  1. Post interessantíssimo. Comovente até. Acredito que o reconhecimento do preconceito possa ser uma das poucas formas de combatê-lo seriamente.

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